domingo, 6 de junho de 2010

Pós Humanismo


As relações entre o humano e a tecnica na epoca das redes
(Di Felice M. e Pireddu M., orgs)

A cultura humanista encontra a sua origem no V século a.C. no pensamento socrático que, na leitura de Platão, desloca o interesse da filosofia da natureza (φυσις) para o humano, os seus problemas e a percepção de si mesmo – esta éuma mudança importante que encontrará novos argumentos e contribuições no século XV e que marcará profundamente o pensamento e a filosofia ocidental.

Por humanismo se entende a virada histórica do olhar e do pensamento que, no século XV, criou – na Itália antes e, logo depois, na Europa inteira – um renovado interesse pelo humano que inspirou a re-leitura dos clássicos gregos a partir de uma concepção mais racional e materialista e, portanto, distante das categorias metafísicas medievais.

Nesse período assistimos à difusão de uma cultura que direcionou os seus interesses sobre o homem e as suas atividades: a arte laica, livre e experimental, a política, o conhecimento e a razão cientifica começaram a tomar, na época, a forma moderna que se consolidou na Renascença, chegando até o Iluminismo e ao Século da Razão. A centralidade do humano e do seu ponto de vista sobre a natureza e o universo, tomou assim, aos poucos, dimensões universais, consolidando uma concepção antropocêntrica e difundindo o mito da autoformação do humano (antro-poiética).

A imagem do homem vitruviano é o símbolo dessa concepção que fez do homem a medida de todas as coisas.

O conjunto de inovações tecnológicas e comunicativas que se difunde em nossa contemporaneidade redefine e altera o nosso cotidiano e os nossos sentidos, mostrando-nos a inadequação e os limites dessa percepção histórica e nos obrigando a repensar o absolutismo do princípio de autoformação e autodeterminação do humano.

Desde a medicina, a biologia, a economia, a política, até a comunicação, os elementos tecno-comunicativos nos permitem hoje o desenvolvimento de funções e atividades – anteriormente impossíveis – que são a evidência do surgimento de uma nova relação (não mais definível em termos instrumentais) entre o orgânico e o inorgânico, entre o sujeito e o território, e que está contribuindo de forma qualitativa para a redefinição da nossa condição humana.

A abordagem de um pensamento além do humanismo torna-se necessária, não somente para a compreensão plena da nossa condição contemporânea, mas também para repensar, a partir de um ponto de vista histórico mais amplo, a relação entre o homem e o mundo ao seu redor.

Afinal, provavelmente, a nossa condição jamais foi apenas humana.

terça-feira, 6 de outubro de 2009

Paisagens Pos urbanas

A introdução de uma nova arquitetura informativa modifica a nossa percepção da paisagem e a nossa forma de interagir com o território.

Com o advento das redes digitais e da hibridação entre informação e territórios, a partir do desenvolvimento dos sistemas informativos geográficos (G.I.S.), são subvertidas e suspensas todas as concepções ligadas ao morar, ao residir e a todas as formas arquitetônicas ou geográficas que descrevem o habitar através das categorias dialéticas de distância-proximidade, de centro-periferia, de interno-externo.

Uma nova forma de habitar se nos apresenta na época contemporânea, na qual o sentido do lugar e o “genius loci” não são mais apenas realidades físicas e geográficas, mas, também, experiências informativas e mutantes, redefinidas constantemente pelo advento de um fluxo informativo provocado pelo aperto de um play ou de um off.

O significado do fim da experiência urbana, mais do que indicar as crises das dimensões sociopolíticas e arquitetônico-administrativas que, depois da cidade, marcam também as metrópoles contemporâneas, aponta para a direção de uma progressiva pluralização do território gerada pelas mídias que, primeiro com a leitura, depois, com a eletricidade – através da reprodução técnica da paisagem criada pelo cinema e pela TV – e, finalmente, com o advento das redes digitais, produz a progressiva perda do significado único do espaço e a transformação qualitativa das práticas habitativas. A recente introdução dos ecossistemas informativos e dos mundos virtuais, não apenas passou a reproduzir ambientes atravessáveis somente mediante formas de interações técnicas, mas, também, motivou o questionamento do conceito de espaço e do significado do habitar.

Superando as percepções arquitetônicas e topográficas, o livro propõe uma interpretação teórica midiática e comparativa do habitar, aprofundando os seus possíveis significados a partir das interações e das articulações que mídia, sujeito e território passam a desenvolver entre si, em épocas tecnológicas diferentes e no interior de distintas arquiteturas comunicativas.

O conceito de habitar é, portanto, apresentado como um conceito estratégico para pensar as transformações que interessam não apenas a época e as sociedades atuais, mas, também, a nossa condição perceptiva e a nossa forma de sentir. No estudo das relações entre tecnologia comunicativa e ambiente, entre mídia e “natureza”, reside essa importante chave interpretativa das transformações e dos desafios da época pós-urbana.


sexta-feira, 27 de março de 2009

Não-ação

"Nem em casa, nem fora, nem ida, nem volta, nem pátria, nem exílio, nem tradição, nem inovação, nem passado, nem futuro, mas transição, translação, tradução, transmissão, trânsito, no espaço, no tempo, na psique, na linguagem, na sexualidade, na sociedade
(...) Em cada lugar está tudo o que deveria estar, porque existe a coisa mais importante: o presente.


segunda-feira, 28 de janeiro de 2008

Rave II

Entendi que o centro da socialidade de uma festa Rave podia ser localizado nos novos significados culturais e comunicativos das novas gerações metropolitanas e, portanto, nos vínculos comunitários produzidos pela música, mas também naqueles criados pelas novas formas místicas que se exprimiam nos estados de alteração provocados pela combinação som-drogas. Me reanimei, voltei a observação a tais novas direções e voltei a campo.
O primeiro elemento, aquele ligado aos vínculos comunitários musicais, não me pareceu, desde o início, um vínculo particularmente coercitivo. Obviamente, a cultura da música eletrônica, da House Music e de todas as suas derivações, estimulava o interesse dos freqüentadores, mas não no sentido tradicional, ou seja, não certamente nas formas e nos significados das vanguardas musicais ou das comunidades surgidas através dos diversos estilos e gêneros musicais. Portanto, abandonei também tal abordagem e me voltei com convicção ao aspecto místico.
A relação música-dança-trans, a crise das formas religiosas tradicionais, o advento da new age e a crise das formas ideológicas do social, tinham aberto espaço ao surgimento de novos significados. Uma primeira constatação era relativa à ausência total do elemento ritual, evidente do fato que nas Raves não se percebia nenhuma forma de coletividade, nem de coesão de pequenos grupos. Dever-se-ia, no caso, pensar em uma forma individual de mística, que emergia nas formas solitárias da dança que se desenvolvia sem o tradicional elemento de aproximação entre os sexos. Os corpos se moviam autonomamente e, sobretudo, sem nenhuma comunicação entre eles. Além disso, o elemento místico era sedutor, ainda mais se ligado às suas inéditas expressões imanentes, que pareciam indicar um contato direto e físico com o desconhecido, todavia não era, sozinho, suficiente para explicar as formas solitárias de convívio assim tão diversas daquelas grupais e dionisíacas das discotecas tradicionais. Nenhuma sedução, nenhum ritual de fim-de-semana, nenhuma evasão das normas e dos costumes morais, nem espaço de encontro e de difusão de culturas alternativas ou, de certo modo, de ritualidade e de significados coletivos. Se o movimento hip hop tinha expressado naqueles anos também os valores e elementos de uma cultura orgulhosamente marginal, praticamente com expressões diferentes em todas as metrópoles, não se podia dizer o mesmo das Raves e dos seus freqüentadores.
Uma agregação sem cultura nem significados sociais, uma espacialidade extra-social... Continuava a procurar possíveis interpretações, mas, no final sempre me restava algo difícil de entender, o centro da questão continuava a escapar-me. Nem o estudo dos estilos e das suas variações se revelou útil a tal propósito. Concluí, assim, que também a pesquisa dos significados rituais, místicos ou coletivos, não tinha me conduzido a um nível interpretativo satisfatório para mim.
Tinha entendido que nem mesmo a interpretação antropológica me permitia, como aquela sociológica, compreender a fundo o sentido das agregações das festas Rave... Quando, (como acontece nesses casos) sem um porquê definido, “tive uma luz”.
Cansado de observar as interações entre os presentes, me pus a observar as performances dos DJs e os seus efeitos sobre o público. Me pareceu, súbito, que a relação entre o DJ e o público era completamente diversa daquela dos shows de rock onde se tinha, sobre o palco, a exibição do artista e, da outra parte, a presença dos fãs-expectadores. Aqui a interação era de outro tipo e não só pelo fato relativo ao diálogo contínuo com o público, como sempre revelado pelas declarações dos DJs que admitem a necessidade de interação como um elemento fundamental para a seqüência das suas intervenções, mas também devido à pouca presença de palco do DJ, que se mantinha praticamente quase escondido, passando quase sempre completamente despercebido. Disso compreendi que nas Raves as relações e as formas de socialidade não eram antropomórficas, ou seja, não aconteciam somente entre sujeitos, grupos etc., mas entre corpos, ondas sonoras, circuitos elétricos (seqüenciador, computadores, mixer, amplificadores etc.) e drogas sintéticas. Decidi parar de observar os comportamentos e as pessoas que freqüentavam as Raves e passei a observar as instalações, os refletores de luz, os amplificadores e as mesas dos DJs, as caixas e os circuitos elétricos que não só produziam música, mas criavam um ambiente, determinando uma situação social transorgânica.

sexta-feira, 18 de janeiro de 2008

Rave I


Várias vezes procurei fazer uma observação participante em uma festa Rave ou em um evento de música eletrônica. Desde o início sabia que, mais do que observar a situação social, o que acontecia, as dinâmicas dos grupos, as formas de interação, os estilos estéticos etc., eu deveria "sentir".
As primeiras experiências, ainda como sociólogo, me ensinaram, em um breve tempo, que, dentro de uma Rave não existiam grupos, nem - tudo somado - socialidade, ou seja, dinâmicas reconhecíveis de "tribos" urbanas ou de pequenos coletivos estéticos. Às vezes me parecia que 4 ou 5 Clubbers se distinguissem porque dançavam próximos, mas, em pouco tempo, o grupinho se desfazia e cada um planava em outro lugar. Era como se, uma vez superada a entrada, o social terminasse e, com ele, também as formas de individualidade estética.
Voltando para casa, sempre ao amanhecer, o meu caderninho, onde costumava recolher as minhas observações e anotações, era praticamente vazio.
Procurei, então, organizar uma tipologia de eventos, distinguindo-os, seja em termos de organização, seja em termos topográficos. Ao lado das grandes reuniões urbanas, geralmente patrocinadas por grandes empresas, aconteciam os encontros extra-polis, ou seja, em contextos naturais e ao ar livre. No caso do Brasil, eles se desenvolviam, sobretudo, no litoral ou no interior, em fazendas - aconteceram algumas raves na floresta, na Amazônia, ou na Mata Atlântica. Mas, com o tempo, também esta divisão me pareceu pouco eloquente. O limite entre a festa privada com convite no estilo das TAZ, ou aquela mais institucional, com DJs internacionais e grandes patrocinadores, pouco a pouco foi se tornando sutil e foi enfraquecendo. Me lembro que na época tinha pensado em interpretá-las à luz da TAZ e das interpretações fornecidas por Hakim Bey sobre as formas de apropriação temporária dos corpos e dos espaços e também sobre a crítica às formas dialéticas do habitar político. Mas, como o tempo passou, me dei conta que o imaginário da zona temporariamente liberada era quase ausente e que, sempre mais, as Raves se propunham mundialmente dentro de uma certa institucionalidade, seja em termos de organização, seja em termos de espaços. A última interpretação sociológica possível era, obviamente, aquela que remetia às velhas lógicas de classe e de exclusão, ou seja, à distinção entre as Raves com o bilhete de entrada caríssimo e aquelas gratuitas, ou quase. O que removeu tal pensamento, que no desigual contexto social brasileiro se impunha com força, foi a exibição de um filme-documentário, realizado por alguns alunos da ECA, que tinha como proposta aprofundar o tema.
O filme - com um título polissêmico como "Cavalo de Tróia", que fazia alusão tanto ao estratagema para realizar a invasão na cidade inespugnável, quanto ao conhecido vírus difundido naquele período, mostrava as diversas formas criadas pelos rapazes menos abastados para entrarem nas raves evitando o acesso oficial e pagar o bilhete.
A câmera seguia as saídas das passagens na floresta, os percursos ásperos feitos para contornar os controles de ingresso e permitir a entrada de todos. Ainda: nas entrevistas parecia evidente que fosse este, para os grupos que se aventuram nos percursos acidentados, o elemento eletrizante e transgressivo que substituía as velhas formas de reapropriação dos espaços tradicionais.
Enfim, nenhuma pista satisfatória que pudesse me re-propor uma ordem social no interior da qual interpretar sociologicamente o evento. Não me dei por vencido e retornei à tarefa, desta vez com o olho apropriado que, mais do que sobre as dinâmicas sociais, propunha-se a colocar o acento sobre aquelas dinâmicas corporais e sobre as formas ritualísticas e simbólicas das raves.
Optei por uma experiência etnográfica que revelasse, através da observação antropológica, os significados sócio-culturais que não conseguia decifrar com as categorias interpretativas da sociologia.

quarta-feira, 16 de janeiro de 2008

Os intelectuais na época da comunicação wireless

Recentemente, em um congresso organizado em Roma, na faculdade di Letras e Filosofia da Universidade "Tor Vergata", discutiu-se a destituição política dos intelectuais. Uma temática interessante que coloca o dedo no cotidiano difícil e atormentado de quem procura, na nossa época, desenvolver a atividade de pesquisador. Fato este, contemporâneo somente em parte, a ser considerado, talvez, como mais uma constante no curso da História que, sem dúvida, viu tempos piores, quando mudar a perspectiva através da qual era observada a realidade e o mundo, ou hipotizar a existência de algo de diferente do conhecido, significava por em risco a própria vida. Mas isto não serve como consolação nos nossos dias. O problema, neste momento, é um outro, e tem a ver não só com a difícil relação entre conhecimento e poder, mas, talvez, também com a transformação do pensamento e do pensar no mundo contemporâneo. Em outros termos: se a passagem do homem tipográfico para aquele eletrônico e cinematográfico foi, de certa forma, uma expansão da escrita na imagem, as pós-geografias das redes parecem interrogar de modo diverso o saber e, consequentemente, os seus artífices. Não me refiro aqui, obviamente, somente à questão das autorias e do pensamento colaborativo, mas, sim, às formas transorgânicas do pensar em rede.
Existe um consenso difundido nas ciências da mente que considera o nosso cérebro como algo de símile a um músculo que passa a definir-se e a transformar-se segundo os estímulos externos ocasionados. Deste ponto de vista, deve-se considerar que as formas conectivas da inteligência determinaram a passagem de uma forma empática do pensamento, que se nutria e se desenvolvia exclusivamente com a leitura, para uma forma ampliada, que espande o nosso cérebro ao satélite e o redefine continuamente através das dinâmicas interativas das conexões digitais.
Ao lado da leitura e das formas visuais e eletrônicas dos media, somou-se uma nova forma de construção de significados e de pensamento, que se articula de forma diversa, com relação às precedentes.
Como a tipografia contribuiu para a formação do pensamento iluminista, individualista e racional e, sucessivamente, a eletricidade e os meios de massa contribuíram para gerar aquele opinativo e revolucionário do cientista moderno, versão intelectual do herói cavalheiresco, as redes deverão exercitar-nos em uma outra forma de construção de significados e em uma forma inédita do pensar.
Se, em uma primeira fase, se estudava os livros e se difundiam os conteúdos na rede, já da algum tempo fomos bem mais além. Como serão os pensadores que desenvolvem o seu pensar nos ambientes wireless? Como frequentemente acontece, certamente é mais fácil dizer como não serão: não serão mais como eram. Nem produzir conhecimento e fazer cultura terá o mesmo significado: aquilo que se apresentou para a arte concerne também o pensamento, aquilo que aconteceu com os artistas, os heróis e os condutores diz respeito também aos intelectuais.

domingo, 6 de janeiro de 2008

Além do real e do virtual


A necessidade de expansão da realidade é tão antiga quanto o homem. Do mito ao teatro, à pintura, à leitura, o desejo de meta-realidade pôde manifestar-se e realizar-se de vários modos.
Antes do cinema e depois da invenção da perspectiva, os jogos dos fachos de luz e o local onde era exposto um quadro em uma igreja demonstravam o objetivo claro de querer simular o real, de mostrar uma cena ou um fato como se este estivesse se repetindo, naquele lugar e naquele momento, ultrapassando a concepção diacrônica do tempo.
Fazer pesquisa em contextos digitais pressupõe uma série de importantes mudanças que pouco têm a ver com as técnicas de pesquisa do método de observação tradicional.
Em primeiro lugar, uma transformação importante se dá pelo fato que a interação não acontece em um lugar geográfico, ou seja, no interior de uma espacialidade definida - a rede não tem lugares, mas arquiteturas informativas que mudam constantemente. Mas não é este o ponto central: mais significativo parece ser o fato de que a rede, na sua expressão atual, não é mais mediada e veiculada exclusivamente pela tela do computador. Estamos, de fato, on-line, mesmo quando pensamos que não estamos, e já podemos nos conectar de vários outros modos, utilizando diversas interfaces móveis. O impacto de tudo isso não está tanto na impossibilidade de descrever algo "on-line", uma interação ou um acontecimento, mas, sobretudo, na consequente impossibilidade de narrar algo "off-line".
Em outros termos, a situação social que vivemos todos os dias é algo que não pode mais ser dividido em off-line e on-line, nem em situações reais e situações virtuais. O nosso mundo não é mais nem real nem virtual, mas algo de diverso, híbrido, onde o lugar é sempre expandível informaticamente, e onde a experiência não é tão somente social, estendendo as nossas sensibilidades e sentires inéditos, transorgânicos, e não mais "espaço" e "antropo"-cêntricos.